Fotografia: Enric Vives-Rubio
Estimada senhora, venha fazer um papanicolau
A casa de mulheres alentejanas mais velhas estão a chegar cartas convidando-as para o exame ginecológico. Há mulheres com medo. A ida a um ginecologista ficou lá demasiado atrás, quando lhes nasceram os filhos.
Estimada senhora: nos nossos dias a saúde integral da mulher constitui um dos principais objectivos para a nossa sociedade…” “Vão fazer porque é bom.”
“A realização de citologias é uma medida acessível, simples e benéfica…” “Eu já fiz e não dói nada.”
“Devido à história natural da doença não há qualquer razão para contrair cancro do colo do útero.” “Se for detectado evitas um problema maior. Se for tarde não há nada a fazer.”
A carta-convite da Administração Regional de Saúde do Alentejo que chega pelo correio não basta para convencer as mulheres alentejanas a irem ao centro de saúde fazer a citologia (conhecido por teste de papanicolau), o exame ginecológico que permite identificar o cancro do colo do útero ou lesões pré-malignas. “Recebem a carta e metem-na de lado”, constata Jacinta Antunes, administrativa da extensão da Vendinha, pertencente ao centro de saúde de Évora.
Para que as mulheres se convençam a ir fazer o exame é preciso que a funcionária lhes traduza o conteúdo da missiva – os conselhos saem da boca de alguém que conhecem desde sempre, “alguém que é de cá”, explica sentada à secretária enquanto coloca a jeito a cara para receber “uma beijinha” de uma idosa que entra afogueada com o calor.
É Jacinta, de 53 anos, quem telefona para casa das mulheres – são poucos os números de telefone que não sabe de cor — ou que lhes diz para irem fazer o exame que é importante e não custa nada quando as encontra no café. “Precisam de um empurrãozinho. Onde quer que as vejo falo nisso. Tu já fizeste?” Até por um marido já mandou recado, “Avisa lá a tua mulher!”.
A lista das mulheres que leva todos os dias para casa tem nomes sublinhados a marcador de cor fluorescente. Ali estão todas as 109 mulheres da aldeia que andam entre os 30 aos 65 anos, intervalo de idades incluídas no programa de rastreio do cancro do colo do útero que arrancou no Alentejo – no primeiro ano é suposto serem rastreadas cerca de 37 mil, fizeram o exame 8552 – e apenas existe ainda na região centro do país. A intenção é alargá-lo a todo o país.
Jacinta tem assinaladas nos seus papéis algumas das mulheres que já foram fazer o exame, mas a grande dificuldade é mesmo riscar da lista o nome das mais velhas. “Abaixo dos 50 anos estão habituadas a ser observadas nas consultas de planeamento familiar”, fazer a citologia faz parte da rotina. Mas tudo se dificulta numa fronteira que começa a partir dos 54 até aos 65 anos.
“Para a maior parte das pessoas é a primeira vez, quando é a primeira vez há mais medo. Só quando foram ter os filhos é que foram ao ginecologista.” São essas as mulheres que dão mais trabalho a Jacinta. “Essas senhoras têm um bocado mais de receio. Envergonham-se.”
Entre as mulheres da Vendinha, Laura Rodrigues, de 56 anos, foi das que se convenceu. Reconhecem-se umas às outras quando se encontraram na sala de espera do centro de saúde de Évora as quatro mulheres vindas daquela aldeia.
Laura está nervosa, muito nervosa, tanto que interrompe de quando em quando a sua espera para ir à casa de banho. “Enervo-me. É a primeira vez”. Nunca fez uma citologia. E ao ginecologista não vai desde que teve o filho Zé Luís, o mais novo, que já tem 25 anos. “Foi através do hospital, fui de graça”. “Já há muitos anos que ouço falar [do exame], nunca tive oportunidade. A vida não nos proporciona mas agora estava lá o meu nome.”
Enquanto Laura entra para o consultório Maria Jacinta Martins, de 60 anos, conta que a sua filha mais velha tem 38 anos, é por isso que sabe há quanto tempo não vai ao ginecologista. Padeira da aldeia, antecipou hoje o amassar — o pão ficou feito — para estar ali, “calminha.” No final do exame Laura suspira aliviada, comentando com as três conterrâneas — e aproveitando para combinar boleia de volta à aldeia — que “já passou, não doeu nada”. “A próxima vez já sei e não fico nervosa.” Ajudou a descontrair ser “uma enfermeira e uma médica”.
As directrizes oficiais dizem que todas as mulheres devem fazer este exame a partir dos 30 anos e, depois de dois anos com resultados negativos, devem repeti-lo com intervalos de três anos.
Tudo o que é desconhecido arranja a imaginação maneira de preencher com “mitos”: que deve doer, que de certeza que deve sangrar, que é complicado. “Quando é coisa desconhecida fantasiam mais”, resume a médica Isabel Moura, médica no centro de saúde do Redondo. Até há quem tenha recusado o exame por achar que quando mais se mexe mais se podem desenvolver os problemas que lá existam.
A médica que fez o papanicolau a Laura, Teresa Neto, explica que numa terra pequena há sempre um segundo grupo de mulheres “que ainda matuta enquanto um primeiro grupo já avançou com o exame”. Laura fez parte desse segundo grupo mais renitente.
Para hoje convocaram 20, apareceram nove. Haverá sempre resistentes mas a médica percebeu que era melhor convocar “primeiro as da aldeia, para espalharem”. Papel central na adesão ao rastreio são as funcionárias administrativas dos centros de saúde das aldeias “que conhecem as mulheres e as chamam”, explica esta médica. Apesar das resistências, Teresa Neto antecipa que em cidades como Évora a adesão ao rastreio será menor do que nas aldeias. Também porque muitas mulheres têm dinheiro para ir a um ginecologista particular e não frequentam tanto o centro de saúde, confirma a coordenadora do programa de rastreio alentejano, Conceição Margalha. “Não marque que eu não venho.”
Há outro factor a favor da adesão ao rastreio no centro de saúde de Évora: no corpo clínico há 13 mulheres e cinco homens. Vantagem que falta ao centro de saúde da vila do Redondo, onde são três os médicos homens e só há uma médica — foi ela quem fez 90 por cento das citologias, conta o director da unidade, Luís Glórias. O responsável já desconfiava que assim se passaria.
Como médico de família há mais de 20 anos no Redondo notava que o encaminhamento pontual que já se fazia para este exame, ou para “tudo o que pressuponha observação ginecológica, não tem adesão.” Quantas vezes ouviu de senhoras mais velhas, “não marque que eu não venho”. As mulheres que lhes escapam têm mais de 50 anos e já pertencem a uma geração de portuguesas que teve os filhos em hospitais, ao contrário do que aconteceu com as suas mães, que andam nos 70-80 anos e tiveram os seus partos em casa. Mas a ida a um ginecologista ficou por aí, pelo nascimento dos filhos. “Terem ido [ao ginecologista] no pós-parto já é muito invulgar.”
“A falta de acompanhamento da saúde feminina” vai mais longe, diz Luís Glórias que, como médico de família, percebe que há um certo tipo de queixas que as mulheres não lhe fazem. É às enfermeiras que, muitas vezes, certos problemas de sáude acabam por chegar, por portas travessas. Se as mulheres mais velhas têm dores ou comichões, estas “apenas são ditas às enfermeiras”, confirma a enfermeira-chefe do centro de saúde do Redondo, Isabel Marques. São estas que se encarregam de fazer “a ponte” com o médico, o que significa que pode ser ele depois “a puxar a conversa” com as senhoras. E assim já é mais fácil. Mas daí até deixarem que seja o seu médico de família a fazer-lhes o papanicolau, vai uma longa distância.
É o dr. Luís Glórias quem lhes espreita para dentro dos ouvidos, quem lhes escuta o coração, lhes apalpa o abdómen para ver de maleitas, quem, há 20 anos, lhes ouve os queixumes sobre os filhos, o marido, os irmãos, os primos. Não concebem que seja o dr. Nuno a fazer aquele exame, nota a enfermeira.
Por contraste, o rastreio da mama tem muita adesão junto destas mulheres. Os especialistas chegam numa unidade móvel e aparcam por um dia no quartel de bombeiros. As técnicas não são da terra e nunca mais as voltam a ver. E o exame da mama é, apesar de tudo, menos íntimo que o ginecológico, resume Luís Glórias.
Ortelina Rainho, de 56 anos, fez o exame da mama e tem a certeza que está tudo bem. Mas há 30 anos que não era “vista” – está à espera para fazer o exame ao útero com a médica. Se fosse um médico sempre tinha mais vergonha mas, diz, “pela saúde temos que passar todas as situações.” “As mulheres ficam nervosas por terem que se despir à frente de um médico”, nota a enfermeira.
Contam que só quando tiveram os filhos se expuseram. Foi preciso arranjar forma de contornar este obstáculo e isso foi conseguindo dando formação a quatro enfermeiras que estão a aprender a realizar o exame que se faz recolhendo células através da passagem de uma escova no colo do útero. O exemplo foi seguido noutros centros de saúde que assim perceberam que aumentavam a sua probabilidades de sucesso.
Luís Glórias deseja que no futuro o rastreio abra portas e que algumas destas mulheres possam vir a queixar-se abertamente e a deixar-se observar. “Pode ser que leve a mudança de mentalidades”.
EUGÉNIA “FOI FALANDO PELA VILA”
Na vila de Mora houve mais um factor de sucesso para o rastreio. Eugénia Garcia não ia ao ginecologista vai para 20 anos. “Asneira da minha parte”, não era por pudor. “Se algumas têm vergonha, não devem. O nosso corpo é assim mesmo, com todos os nossos órgãos.” A verdade é que cada vez que lhe aparecia à frente um médico de família diferente foi perdendo a confiança e deixou de lá ir. Chegou-lhe o convite para ir fazer a citologia, gratuita ainda para mais, e não se fez rogada. “Não temos dinheiro para ir a particulares.”
E o azar de Eugénia — foi uma das seis alentejanas a quem já foi detectado cancro do colo do útero — tornou-se na sorte de Mora. “Houve uma maior adesão por causa desta senhora, trouxe mais mulheres ao rastreio. A senhora foi falando pela vila”, conta o director do centro de saúde de Mora, Carlos Rosa. Hoje com 64 anos Eugénia por pouco não escapava ao rastreio, que acaba aos 65 anos.
“Fui chamada na hora certa.” Lembra-se perfeitamente do dia. Depois lhe dizerem que tinha cancro perguntaram-lhe: “Precisa de um psicólogo?” Ela disse que não, que ia ser psicóloga dela mesma. E começou logo ali a terapia, mal cruzou a porta do centro de saúde tratou de contar o seu mal.
Maria Joaquina Ganhão, dona da florista à beira do centro de saúde, o primeiro sítio onde se pára quando se sai do centro de saúde: “Parece que estou a ver a cara dela. Olhos muito abertos”, lembra, referindo-se ao dia em que Eugénia soube o diagnóstico. Não sabe se usou a palavra “cancro” ou se disse que tinha “um problema”. Só se lembra da sua reacção. “Fiquei a olhar, não sei se lhe disse alguma coisa”, diz Maria Joaquina.
De seguida Eugénia contou ao filho que lhe disse “a mãe vai-se desenrascar perfeitamente” e assim foi. “Já não sou nova mas ainda sou muito nova para morrer. Aceitei a palavra [cancro] e tentei dar-lhe a volta por cima, ainda estou a tentar dar a volta por cima.”
Acredita que convenceu algumas das mulheres de Mora a ir fazer o exame, mas ainda faltam tantas. No café Salgueiro, mesmo ao lado da casa de Eugénia, pára às vezes e tenta convencer quem está atrás do balcão, Ricardina. Ela ouve-lhe os conselhos mas atribui o adiamento “à falta de vagar e ao relaxamento”, que é como quem diz “ao deixa andar”. “Não temos queixas, não temos nada.” Eugénia soube no centro de saúde que há mais uma mulher a quem foi detectada uma lesão pré-maligna, mas ela não contou a ninguém. De certeza que Eugénia a conhece, se calhar até a cumprimentou neste passeio rua abaixo, mas essa mulher não é como ela que aproveita cada troca de conversa para deixar a mensagem. “Se não foste fazer, vai fazer. Eu não me sentia doente!”