Fotografia: Miguel Madeira
Medindo a tensão arterial à sombra de um sobreiro
Para alguns habitantes isolados na serra algarvia há cuidados de saúde que chegam, como o pão e a carne, numa carrinha que buzina à chegada. O enfermeiro que nela segue tanto mede a tensão arterial durante uma matança do porco como à beira da lareira onde se seca o fumeiro. Viu o contrato renovado depois de um abaixo-assinado com muitas impressões digitais a servir de assinatura.
A tensão arterial de Joaquim Rodrigues é capaz de ter disparado porque acabou de matar um porco que lhe deu “uma patada”. No caso de Etelvina Cavaco, só pode ser dos torresmos que se tem “fartado de comer”. E as folhas de oliveira que às vezes se encontram no meio dos pensos de Maria Teresa são sinal de que, em vez de descansar a perna doente, tem ido trabalhar para o campo.
O enfermeiro Ricardo Mestre cruza-se todos os dias com as vidas de quem habita “montes” espalhados pela serra algarvia quando segue na unidade móvel do Centro de Saúde de Tavira, no Algarve.
Ricardo, 23 anos, transporta na carrinha branca transformada em consultório o aparelho de medir a tensão arterial, tiras para medir o nível de açúcar no sangue e uma sacola cheia de pomadas, pensos, gazes, Betadine. Mas a sua função vai bem além de mudar os pensos e “medir os parâmetros vitais” das gentes da freguesia do Cachopo, Ricardo trata de dar-lhes “atenção”, a eles e às suas vidas.
O enfermeiro sabe, ainda antes de a carrinha chegar ao cimo do monte, que aquela família vestida de negro que espreita do alto está de luto porque morreu há pouco o pai da casa, quando a sua carrinha tombou duma ribanceira. Sabe da revolta do filho, que repete desejos de vingança porque não percebe porque demorou a ambulância tantas horas a chegar ao lugar serrano da Cortelha. Trata também de perguntar pela brasileira a um idoso ágil que chega de motoreta para medir a tensão. É a história que o enfermeiro, assim como muitos das redondezas, já conhece: não conformado com a sua solidão, este homem “mandou vir” do Brasil uma mulher de meia-idade com quem ia casar-se. Ela deixou-o. Mas “ainda me deu dias bons”, diz quem, apesar de tudo, não deu o seu dinheiro por mal gasto.
As valências de Ricardo nas suas voltas pela serra vão além da saúde. Como há-de o casal Maria e Manuel Joaquim, da Mealha, saber o que lhes querem do centro de saúde? “Tenho aqui uma carta, eu não sei o que querem que faça”, lamenta o marido.
É a pedir análises de sangue e de urina, lê Ricardo. Às vezes são cartas do banco, da luz, da água que lhe pede para decifrar quem nunca aprendeu a ler. Se não fosse ele, como haveria Maria José Viegas, 82 anos, de ainda se lembrar de quando se tomam os medicamentos? Num saco de supermercado guarda remédios “para as dores e tensão” e recapitula com o enfermeiro os horários da toma, quase em jeito de cantilena: “Este é depois do pequeno-almoço”, “este é duas vezes por dia…”.
A memória vai falhando mas é suficiente para que todos se tivessem lembrado que este era o dia da visita de Ricardo. Estas é que já não são as horas costumeiras da sua vinda. “Nunca isto me aconteceu” é frase já dita pelo motorista João com a carrinha avariada a meio da ribeira de Odeleite, que fica num vale ao qual só se chega e de onde só se sai por estrada de terra batida.
Para não molhar os sapatos foi preciso enfermeiro e motorista descalçarem-se e mergulharem os pés na água da ribeira, que engrossou das chuvas de véspera e corre tão gélida que anestesia os pés. Umas gazes esterilizadas servem de toalhas improvisadas que ajudam a enxugá-los.
A história da aventura da carrinha encravada no meio da ribeira vai ser repetida ao longo do dia, para explicar o atraso da chegada nos sucessivos lugares onde os aguardam à hora do costume. Como na povoação do Castelão. “Olha o meu periquito!”, cumprimenta a octogenária Maria José Viegas, de lábios em forma do beijo estridente que vai dar ao enfermeiro. “Daqui a pouco é meio-dia. A gente estava para lhe bater se não viesse, por enquanto não apanha porrada”. É a frase de arranque de um ajuntamento que vai engrossando. Ouviram a buzina do veículo, que apita para dizer que chegou, tal como faz a carrinha do pão, da carne e do peixe.
É a sombra de um sobreiro com um banco de jardim de ripas vermelhas aparafusado ao chão que faz as vezes de consultório ao ar livre. É aqui que se juntam 15 habitantes de uma povoação de 19. Das poucas portas do casario em volta vão saindo apressadas mulheres com lenço atado à cabeça encimado com chapéu de palha com fita de pano; e alguns homens, menos. “Depois sou eu!”, reclama uma das senhoras.
A tensão arterial vai sendo medida e do grupo vão surgindo comentários para os melhores ou piores desempenhos. “Ela agora só tem comido torresmos”, acusam Etelvina Cavaco, de 68 anos, no tom da cumplicidade de quem conhece do direito e do avesso a vida uns dos outros. “Tchauzinho minha linda”, “prontinho senhor Manuel” – são já as despedidas. Além do atraso, o tema da manhã é também o fim do contrato de Ricardo, já no próximo mês de Março. O enfermeiro explica que é “extraquadro”. O contrato acabou por ser renovado depois de um abaixo-assinado da população, com muitas impressões digitais a servir de assinaturas. “O que é bom num instante acaba” – é o que desabafa uma idosa que põe em contraste as atenções que recebem do “menino Ricardo” com “o doutor, que é raro olhar para a gente”, que dá consulta “de cabeça baixa”. “Não vamos consentir que se vá embora”, refila.
Ricardo sabe que, em terminando o contrato, até vai ter saudades de ter o corpo dorido das curvas e contracurvas. E logo agora, que já tinha percebido muita coisa. Em plena serra algarvia perguntavam-lhe às vezes: “Estava chovendo no Algarve? Vai já para o Algarve?” “No início estranhei, mas depois percebi a lógica. Eles só têm o sol do Algarve”– tudo o mais, como “a praia e o mar”, fica lá longe, a uns 40 quilómetros.